Assisti pouquíssimos live-actions até hoje. O motivo deve ser o mesmo que o seu: geralmente fica ruim (ou bem ruim). Ainda mais quando a gente vê aquele selo “original Netflix” que hoje já espanta muita gente. Foi com esse sentimento que cliquei no episódio 1 do live-action de Alice in Borderland. Mas graças a Deus, eu queimei a língua.
Queimei porque não esperava uma história que fosse me prender, me entreter e me divertir de maneira tão eficiente, e em tão poucos episódios (se bem que se formos converter em “tempo”, daria um anime de uns 20 episódios, mas tudo bem). Acima de tudo, não esperava uma adaptação que não me fizesse sentir vergonha alheia enquanto assistia.
Não que Alice in Borderland seja isento de cenas “vergonha alheia”, só que o enredo e os personagens (fora a produção de alto nível) conseguem tirar o foco desses possíveis pequenos “defeitos”.
Acho legal também, antes de continuar, deixar claro que eu não tive contato algum com o material original, o mangá “Imawa no Kuni no Arisu” escrito por Haro Aso, que esteve em publicação entre 2010 e 2016.
Então, caso você tenha esbarrado nessa crítica sem querer e nem sabe direito o que é um mangá, Alice in Borderland vem de um mangá.
Mas vamos lá: será que Alice in Borderland da Netflix vale seu tempo?
Do que se trata Alice in Borderland?
Na história, iremos acompanhar Arisu (que é a forma de pronunciar “Alice”, em japonês), numa aventura em outro mundo; lugar que é tão desesperador e misterioso quanto sangrento e cruel.
Estamos em Tóquio, e Arisu é obviamente um NEET (o famoso jovem que desistiu de tudo e só fica em casa comento Cheetos bola e jogando video-game).
Ele é um recluso, e sua família parece já ter desistido dele, comparando-o constantemente com seu irmão mais novo que parece ser o engomadinho perfeito. Arisu decide então sair de casa para se encontrar com seus fiéis melhores amigos: Karube e Chota.
A série mostra que a relação deles é bem forte, e que vem de um tempo antes ao tempo atual. Não deixa claro se são amigos de infância, mas seus laços são tão fortes quanto se fossem. No Japão, essa parada de “amigos de infância” pega bem forte. Se você já viu pelo menos uns 10 animes, já sabe do que estou falando.
Karube é basicamente um valentão mulherengo que trabalha num bar, mas é o possivelmente seu amigo mais fiel (pelo menos até os limites de uma pessoa normal). Chota, por outro lado, parece ser o nerdão mais introvertido. É quieto, trabalha numa loja de eletrônicos e sofre com uma mãe que caiu nas garras de uma religião que suga até seu último centavo.
Juntos, os 3 estão “aprontando” pelo centro de Tóquio, mas como as leis japonesas são um tanto quanto rígidas, alguns oficiais de segurança começam a persegui-los. Forçados a se esconder num banheiro público para fugir dos tiras, os três começam a rir da situação enquanto refletem como sua amizade será para sempre. Duradoura, eterna.
Ou, será que não? Um “plot-twist” que te prende!
Do nada, neste exato momento o mundo vira de cabeça para baixo, e todas as pessoas de Tóquio somem do mapa, sobrando, aparentemente, apenas os três confusos jovens na grande megalópole que nunca dorme – mas que agora, parece está mais adormecida do que nunca, para não dizer morta.
Foi “spoiler” essa virada na trama? Sinceramente, se você se importasse de verdade com um spoiler tão pequeno, você não estaria lendo uma crítica sobre Alice in Borderland. Você teria assistido direto à primeira metade do primeiro episódio da série, que é quando tudo que eu citei até agora acontece.
Para mim, na verdade, saber disso é algo que SOMA para a série.
Afinal, o live-action quebra nossa expectativa, tirando o espectador da mesmice e dando uma reviravolta na trama. Provavelmente, esse é o “ten”, do Kishotenketsu que o Narrador nos explicou num episódio recente do nosso podcast, o CúpulaCast. É aí que ficamos vidrados em Alice in Borderland.
Mas, voltando ao assunto, agora estamos num mundo bem diferente do mundo “real” (aliás, nós nem sabemos se foram eles ou as pessoas que sumiram).
Mas nessa nova realidade, Arisu, junto de Karube e Chota, precisarão passar por jogos aleatórios que são, no mínimo, violentos à beça.
Participe dos jogos para ganhar tempo de vida, ou morra mais cedo.
Jogue para ganhar tempo de vida, mas corra um risco ENORME de morrer entrando na arena; afinal, você não faz ideia do que será o jogo.
Poderá ser um jogo de resistência, um jogo de enigma, ou até mesmo um jogo que testará o seu “kokoro“, ou seja, seus sentimentos e suas relações com seus colegas e amigos.
Tudo isso classificado de acordo com as cartas de baralho: paus, espadas, ouro e copa (sei lá se os nomes oficiais são assim, mas eu chamo assim).
Confusos, os três só sabem de uma coisa: eles precisam trabalhar juntos e descobrir como foram parar nessa nova realidade e como voltar para seu mundo.
Espera aí, Alice in Borderland é isekai?
Cara, sei lá. Sendo sincero, eu não ligo muito para essas regrinhas de definição que o fandom de anime cria constantemente. Para mim, isekai é “morrer e ir para outro mundo”. Até onde sei, Arisu e seus amigos não morreram para estar nesse mundo de jogos sangrentos, então, não acho que seja isekai.
Mas existem pessoas que afirmam que Alice no País das Maravilhas é isekai (???), e caso você não tenha se tocado, Alice in Borderland é uma referência a esse famosíssimo filme.
Borderland, “Wonderland“. Arisu, “Alice”. Usagi (amiga atlética do Arisu), é “coelho”, em japonês. Chishiya, “Cheshire Cat”, da versão em inglês do filme da garota loira. Até o lance das cartas tem tudo a ver com o filme clássico.
Enfim, se para você Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland) é isekai, então acho que Alice in Borderland também é.
Pontos fortes do live-action de Alice in Borderland
Eu gosto de como esse novo mundo funciona.
É violento, mas é bem simples: jogue, ou morra. Isso por si só é a motivação para as pessoas mostrarem o seu pior lado, e eu acho que essa é a principal mensagem no live-action.
Digo, está nas entrelinhas, porque mesmo sendo sobre isso, a série dedica muito mais tempo de tela para violência e ação. E nada contra, porque acho que isso é o que prende (e hypa) a audiência num geral. Nem todo mundo vai cavar fundo o suficiente para extrair as mensagens de uma obra. E tá tudo bem.
Mas, além dessa discussão legal, a série trabalha em cima, principalmente, de enigmas, mistério (da trama mesmo, não dentro dos jogos) e da constante sensação de que qualquer pessoa ali pode morrer, por mais importante que ela pareça ser. E o lado interessante: isso realmente acontece.
Por mais que a demografia do material original seja shounen (garotos adolescentes), me surpreendeu bastante a maneira como o autor se “livra” de alguns personagens.
Algumas mortes mais secas e sem emoção (como aquele novo mundo violento exige), mas outras mortes são plot-points muito importantes e desenvolvem os personagens principais.
E como a série trilha em cima de plot-twists, você meio que sempre termina um episódio querendo ver o próximo. Algo que, na verdade, é bem comum com séries da Netflix (eles focam em “maratonas”, caso nunca tenha percebido). Não é à toa que trouxeram Erased e Neverland há pouco tempo.
Em suma, o mundo é intrigante, cruel (que mata mesmo) e angustiante, e os personagens, em sua maioria, são interessantes. Os enigmas fazem sentido, e temos motivações que, no papel, te convencem.
Pontos fracos de Alice in Borderland
Por mais que eu tenha gostado bastante da série, eu não acho que ela seja tudo o que estão falando por aí. “Maravilhosa”. “Incrível”. “Revolucionária”.
Não. Ela se apropria de muitas ideias já usadas em outras histórias, e consegue fazer uma sopa que não fica sem sal, mas também não é o prato principal.
As motivações dos personagens muitas vezes, como antes citado, fazem sentido. Mas no papel. Na prática, no entanto, acho que, narrativamente falando, a série falha em fazer você entender de verdade os que os motiva.
Tipo, quero dizer que está ali. Eles mostram, te explicam. Mas o problema é que não convence você de que aquele personagem seria capaz de fazer o que faz apenas com esse nível de motivação.
Exemplo prático (mini spoiler abaixo)
Tome como exemplo aquele personagem do elenco principal. Foram só umas palavrinhas no ouvido (vindas de uma completa estranha) que ele praticamente se vira contra seus melhores amigos da vida (pelo menos, num primeiro momento).
Ou então, outro personagem que, quando numa situação de risco, simplesmente endoidece e se nega a resolver a situação com calma, sendo que das 3 outras pessoas presentes, 2 são seus melhores amigos. Amigos que ele confiou desde sempre, e a série fez questão de nos dizer que eles confiam uns nos outros.
Só que, no primeiro desespero, ele pareceu desesperado por trocar toda essa história por um romance que mal nos foi mostrado, gerando assim certa desconfiança.
Afinal, o relacionamento dele com os amigos foi trabalhado, mas o dele com a moça que ele aparentemente amava, não. Os pesos dos laços não ficaram coerentes com a tomada de ação do personagem.
Eu entendo que é uma situação desesperadora, e é impossível eu entender o que ele estava sentindo de verdade, mas o fato é que eu não me convenci de que fez sentido ele tomar aquela decisão.
Isso, para mim, é um problema de narrativa, pois aqui o autor (ou diretor, não sei) correu o risco de desconectar o espectador da audiência. Quase ocorreu comigo, mas no mesmo episódio temos coisas bem legais, então meio que passou de boa.
Afinal, o Arisu é ou não uma pessoa muito inteligente?
Este último exemplo, não tem muito a ver com motivação, mas sim de construção do personagem.
Para mim, a série tentou deixar claro que Arisu é uma espécie de gênio, e que quando botado em seu limite, ele consegue superar os problemas.
E ele de fato faz isso ao longo da série, porém eu não senti aquele feeling estrategista de protagonistas mais icônicos, como Light Yagami ou Lelouch.
Senti algo mais próximo com Kurono, de Gantz. Só que a diferença é que o Kurono trabalha com um arco de mudança positiva (acho que é isso), pelo qual ele precisa ir do status de “pau no cu não identificável” para um “líder carismático e confiável”.
No entanto, fiquei confuso com Arisu porque, no fim, não consegui achar ele super inteligente (o que ele é, já que ele resolve as treta mesmo), ao mesmo tempo que não achei ele nem de perto tão carismático ou “líder” quanto Kurono.
Além disso, algumas coisas ficam legais em anime/mangá, mas com pessoas de verdade…
No comecinho do texto falei sobre cenas de vergonha alheia, tipo cringe mesmo. Em outros live-action que assisti isso ocorre com maior frequência, mas, mesmo que em menor intensidade, Alice in Borderland não passou isento.
Temos algumas cenas que me passaram a sensação de “cara, isso aqui no mangá pode ficar impactante, foda e tal, mas aqui fica muito… não real”.
Por exemplo: o personagem que faz parte do lado “do mal”, o Niragi. Tem cenas que ele está falando, e a câmera NÃO está perto o suficiente da cara dele, mas mesmo assim, ele faz aquela parada de botar a língua para fora e lamber os lábios, clássica de vilões feitos para passar “desgosto” ao espectador, mas em séries com pessoas de verdade isso fica tipo… Muito escroto.
Ninguém faria isso na vida real, não daquela forma. É tão cringe que eu dei uma gargalhada enquanto assistia, mas definitivamente não era uma cena para rir.
Outro vilão da história tem cenas CONSTANTES onde a câmera foca nele, e ele fica FIXO olhando para um ponto, sem falar NADA. Sabe, aquela cena clássica do vilão olhando para a casa que ele acabou de incendiar, e as centelhas estão voando, e a luz aumentando e diminuindo, e ele fica com uma cara de paisagem, mas que quer dizer TUDO.
Em Alice in Borderland isso NÃO acontece. Digo, a fórmula tá ali. Preencheu o checklist de “cena clássica do vilão”, mas o personagem é tão vazio, mas tão vazio, que você ao assistir não faz ideia do que ele tá pensando. Então, parece só um bonecão olhando pro fogo. Fica muito esquisito.
Para fechar, eu julguei bem arriscado esperar tanto para explicar a motivação do vilãozão. Eu já tinha desconectado dele faz tempo. Então, ele acabou como só um “cara mau, fazendo coisas más”. Não me convenceu. Falamos melhor sobre esse tipo de “problema” no nosso episódio do CúpulaCast sobre vilões.
Mas no fim, o live action de Alice in Borderland é bom ou não?
Sim, é bom, e com certeza vale seu tempo.
Reforço que não li o material original, então por favor não me venham com “mas no mangá não é assim!!!!”. Escrevi sobre a série, sobre pontos que eu considerei fortes e pontos fracos que me chamaram a atenção.
Como sempre falamos aqui na Cúpula, assista e tire suas próprias conclusões. Idealmente, você precisaria assistir ela inteira para entender tudo que eu falei nesse texto, porque como dito a série tem umas reviravoltas interessantes. Coisas inesperadas mesmo, então só ver o episódio 1 não te fará ter a experiência completa que Alice in Borderland quer passar.
Só que, também, se você ver o episódio 1 e não curtir tanto, recomendo ver no máximo o episódio 2. Se não gostar até aí, acho que não é para você.
Então, para concluir: Alice in Borderland é, propositalmente, o oposto de uma terras das maravilhas, e ele consegue passar muito bem essa sensação de ansiedade e medo por meio da violência e da tensão dos jogos.
Todavia, os personagens tem motivações que no papel funcionam, mas que foram muito facilmente quebradas ao longo da série em alguns pontos (ou pelo menos a narrativa falhou, dando essa impressão). Isso me deixou um pouco “ué”, mas nada que deixe a série ruim. Cenas cringe também estão presentes, mas é normal, afinal, é um live-action.
Aguardo a segunda temporada (que já foi confirmada), com um leve sorriso, não um sorrisão.