O que é indispensável para você, leitor, em qualquer obra visual? Qualidade, enredo, originalidade, batalhas? Bom, essa é uma pergunta pessoal, mas aposto que uma boa história seria a melhor resposta. E “O Marido do meu Irmão está aí para provar esse argumento.
Uma boa história não necessariamente é aquela com um trama cabeçuda, cheias de nuances, intrincadas, com plot twists que dão duplos carpados.
Pelo contrário, uma história simples, porém bem contada, pode se tornar memorável.
O Marido do meu Irmão, no original, ”Otōto no Otto”, é uma série de mangá ilustrada por Gengoroh Tagame, e publicada na revista Monthly Action, pela editora Futabasha, entre novembro de 2014 e maio de 2017 e contém.
A obra também é vencedora do prêmio Eisner de Melhor edição de material internacional – Asia, em 2018.
O autor declarou em entrevista que a intenção era fazer uma obra que conversasse com o público heterossexual, afim de quebrar preconceitos com pessoas LGBT.
Esse mangá retrata a relação entre Yaichi, a sua filha Kana, e o canadense Mike Flanagan, que casou-se com Ryoji, o irmão gêmeo de Yaichi.
A história aborda questões como homofobia e as diferenças culturais, além das relações familiares.
O Marido do meu Irmão trata de um assunto que até hoje, em pleno 2020, ainda é um tabu praticamente no mundo todo.
Como é a homossexualidade no Japão
Desde o ano de 1880, o Japão é um país que legalmente aceita a relação afetiva/sexual entre pessoas do mesmo sexo.
O Japão é considerado um país progressista diante dos padrões asiáticos. Porém, ainda a não é um lugar fácil para viver tratando-se de LGBT’s.
Não há leis de anti-discriminação no trabalho (exceto em Tóquio). Casamento entre pessoas do mesmo sexo não é permitido. Não há reconhecimento de casais do mesmo sexo. Adoção conjunta por casais do mesmo sexo é pouco provável (só há um caso no país).
A falta de acesso a fertilização in vitro para lésbicas. Homens que fazem sexo com outros homens só podem doar sangue após ficar seis meses sem relações sexuais.
Segundo dados da Wikipédia, a população LGBT no Japão com idades entre 20 e 59 anos, era de aproximadamente 8.9% (2018). Já no Brasil a média é de 7,5%, podendo variar para mais ou para menos dependendo da região.
O Japão se considera um país ”não preconceituoso”.
Porém, o preconceito não existe somente de forma direta como podemos imaginar, mas também a várias formas indiretas de preconceitos que muitas vezes consideramos normal.
E é esse ponto que O Marido do meu Irmão trata com maestria.
Para citar um exemplo, no mangá, é retratado que eles não tem preconceito contra homossexuais. Porém, eles evitam tocar nesse assunto e simplesmente ignoram esse fato e tratam essas pessoas como se elas fossem ”normais”.
E aí, isso é o certo a se fazer?
Preconceito e contradições
Logo no começo do mangá temos uma cena típica de preconceito.
Mike chega do Canadá e vai até a casa de Yachi para conhecê-lo. Entretanto, Mike não se aguenta, e ao se deparar com o irmão gêmeo do seu ex-marido se debulha em lágrimas e o abraça.
Mas Yachi, em sua cabeça, o afasta e diz ”me larga sua bicha”.
É engraçado que na função de espectador temos uma visão privilegiada de toda a cena. Acredito que essa seria a atitude de muitos.
E o autor sabe que seria.
Então, aos poucos ele insere várias situações assim para nos fazer refletir sobre, assim como Yaichi faz.
Yaichi apesar do que pareceu de início, é uma pessoa boa e bondosa. Não demora muito para ele começar a repensar suas atitudes e perceber o quanto elas são extremamente preconceituosas e infundadas.
Yaichi ama sua filha Kana, e o maior desejo dele é que ela se torne uma boa pessoa.
Mas como fazer isso tendo atitudes preconceituosas?! E é nesse dilema ético e moral que o autor de O Marido do meu Irmão nos coloca.
Digo ”nos coloca” quando você é um homem heterossexual que está lendo. Não é muito difícil pensarmos que agiríamos exatamente da mesma maneira que Yachi nas mais diversas situações.
Mas o autor de, forma sutil, vai nos guiando pelo caminho do conhecimento e da autodescoberta. Primeiro, o autor arranca nossa máscara de bom moço e legal, e nos mostra o quão homofóbico podemos ser, mesmo nós tendo a certeza do contrário.
Quer um exemplo? Você acha que só o fato de ”aceitarmos” que alguém é homossexual nos faz uma pessoa ”não homofóbica”? O autor de Otouto no Otto nos mostra o outro lado da moeda.
Não é bem assim…
Na verdade, O Marido do Meu Irmão é mais simples do que parece.
Tudo que eu falei anteriormente são camadas mais internas da obra que eu interpretei. Diferentemente do que eu fiz parecer, esse título é bem menos ”politizado” do que ele poderia ser.
A história segue por um caminho ”safe”, pouco se arriscando em temas mais profundos ou polêmicos.
O mangá é extremamente leve, ”clean”, divertido, restaurador de fé e fofinho. É uma obra feita para ser amada. O verdadeiro ”feel good mangá’.
É uma história para você recobrar a fé na humanidade. Aquela história para ler quando você estiver triste e ficar feliz.
Seu plot twist é tão simples, mas ao mesmo tempo tão carregado de sentimentos, que faz aparecer ninjas cortadores de cebola no mesmo instante (se é que você me entende). Brincadeira, homem chora mesmo e não há nenhum problema em você fazer isso.
Sua conclusão é tão satisfatória que a sensação que você tem quando termina de ler é a de plenitude.
O final é verdadeiro com o leitor, com os personagens e com a premissa. Não é um final perfeito, perfeito no sentido do clássico ”…e viveram felizes para sempre”. É um final real, natural.
Os personagens de Otōto no Otto
A história é curta, tanto em questão de páginas, quanto na cronologia do mangá.
Toda a história acontece apenas em alguns poucos dias, mas foi o suficiente para entregar um desenvolvimento de personagem satisfatório.
Yaichi
É o que tem o grande arco.
O autor desconstrói o personagem nos primeiros capítulos para aos poucos reconstruir seus conceitos e crenças. Entretanto, como eu disse, essa é uma obra sincera.
Então, não vá achando que ele vai se tornar um ser humano perfeito ao final da obra. Não! Ele ainda vai ter seus defeitos, mas a lição que ficou, para nós e para o personagem, é que é possível se tornar um ser humano melhor.
Mike Flanagan
É o tipico americano (por fora). Um cara grande, musculoso e barbudo, mas que na verdade é um cara extremamente doce, correto e bom.
Ele é uma pessoa que todos gostariam de ter como amigo. Suas emoções são verdadeiras.
Mike aparenta ser alguém bem resolvido e experiente, provavelmente por conta de sua notável experiência. Afinal, é possível perceber que ele passou por muitos momentos difíceis na vida.
Kana
Sua função narrativa é mostrar para nós, leitores, que em algum ponto de nossa infância nos perdermos algo que dificilmente poderemos recuperar, a inocência.
O verdadeiro significado de ”o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”.
Kana não entende muito bem como funciona o mundo, porém ela tem a capacidade de ver quando algo é justo ou injusto.
No início, a personagem parece um pouco forçada, com diálogos muitos astutos para alguém de sua idade, mas em poucas páginas esse estranhamento passa e nos envolvemos com seu personagem
Finalizando…
O Marido do meu Irmão é um mangá simples e direto.
Em tempos de intolerância, essa obra é um respiro no meio de tanta maldade no mundo. Uma história que fala sobre aceitação/autoaceitação, empatia e a luta pelo direito de ser quem você realmente é.
Para aqueles que já leram essa obra, deixa nos comentários qual foi a lição que você aprendeu com ela.
Eu aprendi que ainda falta muito para eu aprender, e que o caminho para se tornar uma pessoa melhor é uma jornada de autoconhecimento e se colocar no lugar do próximo.
E, para aqueles que não a leram, vai correndo ler e volta para me dizer se valeu ou não valeu o investimento.