Se imagine no fundo do poço. Mas no fundo mesmo. Naquele nível onde ir para baixo parece tão impossível quanto quebrar a bedrock no Minecraft. Você literalmente está comendo lixo e seu próprio vômito para não perder nutrientes, à fim de não morrer de fome. E você ainda tem uma dívida de milhões com a yakuza. É aí que começamos a acompanhar Denji, o protagonista do mangá Chainsaw Man…
Chainsaw Man é um mangá japonês escrito e ilustrado por Tatsuki Fujimoto que foi publicado semanalmente na Weekly Shōnen Jump ?????? (mais para frente vocês vão entender essas interrogações…), até seu 97º capítulo. A parte 1 desse mangá foi até aí, e é sobre ela que escreverei aqui.
Eu e o Dudi até gravamos um episódio do CúpulaCast sobre o mangá, porém senti que tinham mais coisas que eu queria falar sobre Chainsaw. E eu já falo demais nos casts, então, cá estamos!
Espero que você saia dessa crítica com um sentimento de satisfação tão grande quanto eu senti quando terminei de ler esse mangá.
Então, sim, spoilers: eu gostei.
Denji é o underdog dos underdogs
Não consigo me lembrar a última vez que peguei para ler uma obra com um protagonista tão underdog.
Na boa, Naruto viveu como um rei comparado ao Denji. Isso por si só praticamente já fisga sua atenção ao começo da história. Fora que o Denji tem um “cachorrinho”, então, a técnica de empatia clássica fica melhor ainda.
Essa cachorrinho é o Pochita, e na verdade ele não é um cachorro. É um demônio. Que tem uma serra no lugar do focinho. E o Denji usa ele para matar outros demônios, pois esse é o trabalho dele, já que precisa coletar muito dinheiro para quitar a dívida milionária de seu falecido pai.
É. É doido.
Denji vivia, literalmente, comendo lixo, o próprio vômito, e passava noites em claro pois seu estômago doía demais para ele conseguir dormir.
Porém ele não passa o semblante de “coitado”. Muito pelo contrário, ele já parece nem ligar para nada; mas seu instinto de sobrevivência ainda fala mais forte.
Quando criança, Denji acabou esbarrando em Pochita quase morto. E é de senso comum no mundo de Chainsaw Man que demônios se regeneram ao ingerir sangue humano. Denji, então, dá seu sangue ao Pochita e sugere um contrato do estilo “eu vou te ajudar, mas me ajuda também.”
E aí começa a história do menino que usa o seu cachorro serra-elétrica para combater demônios…
Tá, mas não é o Denji que é aquele cara da serra na cabeça?
Ah é. Sim, é ele.
Na verdade, aqueles mafiosos para quem o pai de Denji devia uma grana fizeram um contrato com o Demônio Zumbi. E esse demônio matou todos eles, e agora iria matar Denji. Na verdade, matou, porém foi a vez de Pochita salvar seu amigo; se tornando um só com o garoto.
E aí sim, nasce o Chainsaw Man!
Logo após esse renascimento, Makima, uma linda mulher pela qual Denji basicamente se apaixona a primeira vista, aparece e vira a “guardiã” do nosso protagonista, colocando-o para trabalhar onde ela trabalha: na defensoria pública. Que é, basicamente, uma organização do governo responsável por controlar/caçar demônios.
Denji, agora, trabalhará oficialmente como caçador de demônios, ao lado de Aki, o Sasuke melhorado da obra, e a Power, a Zero Two de Darling com personalidade do Bakugou (credo!).
Chainsaw Man tem uma premissa que impressiona por diversos motivos
Como tudo foi muito bem construído no primeiro capítulo, você de cara já vai curtir a ideia de Chainsaw.
Ela é simples. Nós vamos acompanhar um garoto, completamente sem ambições grandiosas, em sua jornada para conquistar 3 refeições ao dia e um lugar para dormir. Se der tudo muito certo, ele também adoraria botar a mão numas tetinhas.
E é isso.
Simplesmente isso. E funciona.
Funciona porque essa história não é sobre ser “o Hokage”, ou ser o “Rei do Piratas”; é a história de alguém que veio do NADA, mas que ao mesmo tempo não é ambicioso. Aliás, não é virtuoso, não é íntegro, e muito menos ético.
Denji funciona como personagem (e te cativa por isso) porque ele é o que quase nenhum protagonista de shonen de porrada é: sincero demais em suas decisões (que são ruins, em suma), “full foda-se” e gado. Quem não gostaria de acompanhar a história de alguém assim?
Protagonista interessante: check.
Além disso, o mundo de Chainsaw é apresentado de maneira tão orgânica, mas tão orgânica, que se você for um pouco impaciente pode começar a achar chato que não temos um diálogo super expositivo explicando como funciona aquele mundo, os poderes, os demônios…
Praticamente nada é explicado de maneira expositiva, o que, para mim, é um baita ponto positivo.
Em obras como Demon Slayer ou Jujutsu Kaisen, onde as lutas literalmente PARAM no meio para algum personagem (ou um NARRADOR) explicar os poderes me deixam um pouco decepcionado, porque, sei lá, parece tão fácil explicar assim né?
Explicar o funcionamento do universo da obra, da mitologia e das regras daquele mundo através de diálogos indiretos ou pelos desenhos é muito mais significativo. Quando bem feito, né.
Narrativa pouco expositiva que não te trata como burro: check.
Muita, muita, muita violência
Não sou um grande fã de violência gratuita, e sou obrigado a admitir que em Chainsaw Man ela é gratuita pra caralho na maior parte do tempo. Ou pelo menos quase gratuita.
Temos muitas cenas de pessoas morrendo serradas ao meio, decapitadas, tripas para todo lado… É um gore sem fim.
Isso somado ao traço pesadíssimo e meio bagunçado do autor, que em algumas cenas praticamente não é possível entender nada do que está acontecendo, dão um “tom bem seinen” (como o povo fala) para a obra.
Muita violência. Se você não leu o mangá, você não tá entendendo. É muita.
Como os demônios se regeneram muito facilmente, fica bem fácil fazer membros serem decepados o tempo inteiro. Afinal, dê umas gotinhas de sangue e tudo voltará ao normal mesmo…
Mas sabe o doido? Eu, que sou chato, não dei bola para essas conveniências estilo “o Denji (e muita gente) praticamente morre o tempo todo mas volta o tempo todo também”.
Sei lá, a atmosfera de Chainsaw Man é tão caótica que me lembra muito a de Dorohedoro – mas misturada com Gantz!
É muita doidera. E a loucura que parece ser a maior guia dos personagens te joga num estado tipo “Meu Deus do céu o que está acontecendo? Quero ler mais!”. É um tanto quanto inexplicável, mas é bom.
Ambiente caótico que funciona (e melhora com a violência e o traço pesado do mangá): check.
Dúvida sincera: como diabos isso foi serializado na Shonen Jump?
Eu não faço ideia de como Chainsaw Man foi publicado durante mais de 2 anos numa revista cujo público-alvo são meninos adolescentes, ao lado de obras super “ok”.
Digo, o público-alvo é evidentemente shonen. Basta olhar para a motivação dos personagens, os diálogos, as lutas… Tudo é bem shonen. MENOS a violência explícita e o gore abusivo.
Não pesquisei mangás do passado, mas acho que Chainsaw Man pode ter sido a publicação mais violenta que já passou pela revista.
Fico muito curioso para saber como isso aconteceu, e também fico curioso para saber se esse foi um dos motivos para justamente mover a parte 2 de Chainsaw para a versão web da revista, onde o público-alvo tem uma idade média maior…
Mas, não é só de violência que Chainsaw Man vive!
Apesar de que na primeira metade (talvez um pouco mais da metade) temos uma trama bem direta ao ponto, o Fujimoto não hesitou em dar um passo além e trabalhar coisas diferentes, como plot-twists, explicação de alguns fenômenos que pareciam sem explicação e uma evolução muito maneira para o protagonista.
As reviravoltas da trama foram propositalmente construídas desde os capítulos iniciais, nos quais temos personagens tomando ações… duvidosas, são bem consistentes e te deixam com um pulga atrás da orelha.
Sinceramente, nenhum personagem é preto no preto branco no branco – todos são cinzentos.
Você não sabe o que eles vão fazer, pois suas ambições são muitas vezes bem egoístas e o autor mostra com o passar dos capítulos que matar personagens não é problema para ele.
Tudo bem que a falta de profundidade e explicações para alguns personagens podem acabar tornando ele misterioso demais ao ponto de ser incompreensível ou não convincente. Acontece pouco por aqui, mas acontece. Tenho certeza que ao ler você pensou algumas vezes “Tá, mas quem é esse maluco aqui? Ah, foda-se, é inútil mesmo.”
Os demônios são bem criativos!
Por fim, a maneira como os demônios são criados e seus “ranques” são muito criativos.
Temos, por exemplo, o Demônio Tomate, que é mega “inofensivo”.
Afinal, acho que pouca gente tem medo de tomate…
Por outro lado, temos o Demônio Pistola, que representa as “armas” do mundo. E todo mundo tem medo de arma, né? Ou o Demônio Escuridão (que NÃO É o da foto abaixo), que aparentemente é um dos “medos primais”… Ele era MUITO foda e assustador.
Óbvio. Muita gente tem medo do escuro.
Demônios maneiros e criados de maneira interessante, personagens cinzentos e duvidosos: check.
Opinião impopular: eu NÃO gostei da maioria das brincadeiras de tradução
Se você acompanha grupos de Facebook, páginas de anime ou coisa do tipo, você provavelmente já se deparou com algumas imagens que mostram um pouco da tradução feita pelas scans aqui no Brasil. Se fosse para chutar, aposto que, se você viu, foi esta:
Algumas brincadeiras ficaram simplesmente forçadas demais, ao ponto de parecer as chamadas “piadinhas de tiozão” que eu tanto pego no pé do Diego e do Hugo nos CúpulaCasts.
Além disso, as vezes, chegaram ao ponto de nem fazer sentido, tipo quando uma moça japonesa fez uma analogia com portugueses roubando ouro deles…
Nós, brasileiros, entendemos. Mas me desconcertou, afinal, um personagem que mora no Japão nunca falaria algo assim.
Veja aí do lado ->
ENTRETANTO, não me entendam mal. Eu disse que não gostei da maioria das brincadeiras. Porém boa parte delas ficaram realmente bem encaixadas e funcionaram com o contexto geral.
A maneira agressiva de o Denji conversar (com erros de português na escrita, para demonstrar o analfabetismo dele). Os apelidos, como “Cebolinha” pro Aki. Ou até mesmo momentos onde temos falas como “Porra eu só queria morrer apanhando pra uma gostosa…”, nessas horas eu realmente me peguei rindo durante a leitura.
Eu DUVIDO que a Panini trará uma tradução tão divertida assim (sim, o mangá de Chainsaw Man será publicado no Brasil)… Mas, é o que temos pra hoje!
Acho que o ideal teria sido exatamente o que foi, só que com um pouco menos de forçada na barra.
Não só reviravoltas na trama, mas também nos clichês
Para fechar, acho que é completamente justo levantar esse ponto, pois foi de longe um dos mais elogiados por mim e pelo Dudi no cast: o autor gosta de pegar os clichês e mostrar algo que vai CONTRA a expectativa do leitor.
Tipo, Chainsaw Man segue o Denji, que tem como ambição, no começo, conseguir uns beijinhos ou botar a mão no peito de uma garota.
Vai dizer que isso não é exatamente o que 99% do público-alvo dessa obra [shonen] quer ver acontecer?
Depois de anos sendo iludidos com uma ceninha caliente ou outra em obras como One Piece, Naruto, Bleach, Boku no Hero… Chainsaw Man chega chegando com mão na teta e tudo.
UAU! Isso é tudo que o otaku queria!!! A maioria já estava preparado para soltar pipa, mas, na verdade, Fujimoto entrega o oposto: a reação do protagonista é algo como “nossa, mas era só isso?”.
Posso estar tirando leite de pedra aqui. Mas acredito que essa é a forma do autor mostrar para o público que ser um tarado inconsequente simplesmente não vale a pena. E ele repete isso com coisas diferentes, em intensidades diferentes, ao longo desta parte 1 inteira do mangá.
Você até pode gostar, e até pode fazer de tudo para conseguir, mas ele mostra que ao conseguir, você não ficará realizado.
E não para por aí…
AO MESMO TEMPO, essa é uma brincadeira com a “fórmula da felicidade”. Já ouviu aquela que diz que somos felizes na jornada, e não na chegada?
Aquela que diz que quando você tem um objetivo você é feliz, mas ao atingir e ver que não era tudo aquilo, parece que as coisas não fazem mais sentido?
Pois é. Tirei tudo isso da brincadeira com as tetinha.
E algo que reforça isso para mim são cenas como a que o Denji toma banho com a Power. Nessa hora, de novo, os moleque tudo com a mão no piriquito já pensando “UAU vai rolar uma ecchizada braba agora”.
Só que não.
Fujimoto escreve e desenha a cena de modo que parece sensual, mas ao mesmo tempo, mostra que o Denji só vê ela como uma irmãzinha. Não sentindo nada. E todo o “ecchi” daquela cena está ali para exaltar isso, logo, é um ecchi narrativamente útil, o que é bem bacana. Afinal, geralmente, temos só ecchi bosta e forçado, tipo em Fairy Tail e Nanatsu no Taizai.
Mais um ponto positivo para Chainsaw Man!
Finalizando a crítica do mangá Chainsaw Man
Todos os meus amigos falavam: “André, lê Chainsaw aí que é muito bom.”
Eu li. E é mesmo um ótimo mangá.
Comça como um bom mangá porque, apesar de ter violência pra cacete, ela conversa bem com o ambiente caótico e a personalidade maluca dos personagens.
Continua bom porque, mesmo tudo sendo maluco, a trama principal é interessante e te fisga, ao mesmo tempo que o autor dá umas pitadas aqui e ali de possíveis reviravoltas.
Fica “muito bom”, pois essas reviravoltas são mesmo bacanas (apesar de esperadas, como o “verdadeiro vilão”… mas eu DUVIDO que alguém sabia o que, na verdade, é o Demônio Serra).
E se consagra como sendo ótimo, afinal, é muito divertido de ler, muito mesmo.
As temáticas são pesadas, mas a narrativa não é dramática o suficiente para gerar gatilhos e deixar alguém (muito) deprê lendo. Fora que o contexto de puro caos não permite que fiquemos sentimentais demais.
Ademais, se fosse para rebuscar os pontos negativos, diria que o traço se perde em alguns momentos, tornando bem difícil a identificação do que está de fato acontecendo em algumas lutas.
O design dos personagens é bem fraquinho, dando aquela impressão Shingeki ou Gantz, que você meio que não sabe quem é quem as vezes (fora a Makima, o Denji e a Power).
Mas, enfim, leia Chainsaw Man. Afinal, onde mais você encontrará um homem-serra pilotando um tubarão. num capítulo que se chama “Sharknado“?
EXTRA: comentário pessoal sobre a parte 2 de Chainsaw Man
Enquanto escrevo esta crítica ainda não temos praticamente nada de informação sobre a segunda parte de Chainsaw Man, além de que ela vai existir e que NÃO VAI continuar na Shonen Jump física. O mangá será movido para a versão online da revista, Jump+.
Uma opinião sem spoilers é difícil, mas o que posso dizer é que o final de Chainsaw Man é bem satisfatório (apesar de duvidoso em certos pontos, quem ouviu o cast meu e do Dudi tá ligado…).
A deixa para continuação é orgânica, ao mesmo tempo que me deixa com o pé atrás. Tenho medo dos personagens que eles vão querer “trazer de volta”, se é que me entendem.
Além disso, terminamos com uma deixa indicando que, TALVEZ, teremos uma pegada mais “heróica”, onde um “herói” aparece para salvar a população quando a mesma se encontra em perigo.
Não vou dizer quem é o tal herói (não é óbvio, ok), e nem o que é o perigo. Você precisará ler para entender, mas assim… não sei. Sendo bem bem bem sincero, eu não sei se será possível manter a mesma qualidade geral da parte 1.
Concluindo, acredito ainda que se o mangá Chainsaw Man fosse, por completo, apenas a parte 1, eu já estaria bem satisfeito.