Perfect Blue é um filme desconfortável. É, acho que essa é a melhor palavra pra isso. Quem conhece um pouquinho sobre animes e já assiste há um bom tempo já ouviu falar desse trabalho do incrível diretor Satoshi Kon, que também atuou dirigindo Paprika e Tokyo Godfathers (esse, inclusive, eu recomendei em um de nossos listões).
Talvez seja porque eu tenha assistido dois filmes de ditadura militar antes desse (por conta de trabalhos da faculdade), mas realmente saí com a cabeça um pouco pesada depois de Perfect Blue. Apesar de ser um filme mais antigo (de 1997), tem uma qualidade absurda em termos de direção, ambientação e animação, inclusive.
Como isso é uma análise completa do filme, não acho que eu precise economizar com spoilers. Se você chegou aqui por algum motivo e não assistiu a Perfect Blue, eu sugiro que você pare agora de ler e assista. Porque se a sua pergunta for “é bom?”, eu já tenho a resposta. É ótimo, definitivamente. Então, não perde tempo e vai lá assistir.
Agora, se você já assistiu e ficou confusa(o), aqui é seu lugar. Sinta-se em casa. Pegue uma coquinha gelada ou um refresco natural de laranja, se você não quer morrer diabético. Eu recomendo água.
Afinal, o que esse filme é? O que quis dizer? Perfect Blue pode gerar algumas interpretações, e esta é a minha.
- Estúdio: Madhouse
- Data de lançamento: 28 de fevereiro de 1998 (Japão)
- Gêneros: Drama, terror, psicológico, suspense
- Direção: Satoshi Kon
- Duração: 85 min
- Orçamento: US$6.5 milhões
Do que se trata Perfect Blue?
Mima Kirigoe é uma idol participante de um grupo chamado “CHAM!”, e, a princípio, parece feliz com aquilo que faz. De início, podemos vê-la dançando com mais duas outras meninas, também integrantes do grupo, de maneira animada (inclusive, a musiquinha fica na cabeça!).
O nosso problema começa quando Mima decide largar a carreira de idol para virar atriz. Bem, eu não sou muito ligada nas notícias a respeito de idols, mas eu acredito que consiga classificá-los: idols são, como o próprio nome diz, ídolos.
São, portanto, modelos perfeitos, genuínos e puros de cantores e cantoras, que todos conhecem e amam pela beleza e inocência. Esse termo não é comum por aqui justamente porque nasceu em meio asiático, e eles têm uma noção diferente da nossa a respeito de grupos ou bandas de jovens, inclusive no que se trata a respeito de beleza ou entretenimento. Mas o que vemos em geral são jovens extremamente belos e preocupados com entregar essa beleza ao público.
Creio eu, pessoalmente, que o primeiro ponto a entregar criticamente seja este: as pressões da indústria nipônica sobre padrões específicos impostos a pessoas públicas. Mima realmente não parece querer largar o canto, mas seu produtor a aconselha, e ela cede. Mal ela saberia que isso resultaria em um desastre sem precedentes.
O que é importante para entender o filme
Eu gostaria de dizer, antes de tudo, que detesto a posição em que algumas pessoas se colocam falando que “nossa, mas é muito fácil de entender”, ou “se você não percebeu as nuances, você é burro”. Aham, vai nessa. Nem todo mundo assiste às coisas ativamente e pensando o tempo inteiro.
Às vezes, vemos alguma coisa por diversão, após um dia estressante. Então, aqui vai minha primeira recomendação para entender: tire tempo e não assista correndo. Se você resolver assistir em 1.5x, como o Welerson faz, é provável que não consiga captar uma coisa ou outra que o diretor quer te mostrar.
Além disso, eu quero te relembrar dos personagens mais marcantes da trama além da nossa protagonista, que são três: seu produtor, Tadokoro, que a incentiva a largar o grupo idol; sua também produtora e amiga Rumi; e, por fim, o Me-Mania, seu “perseguidor” durante o filme.
Há outros além destes, mas os três fazem parte mais ativamente da história e são os mais importantes. Levando isto em consideração, vamos seguir aqui da seguinte maneira: eu separarei a história em três partes.
A primeira parte, que tratará da quebra de vínculo da protagonista com o grupo e como ela a enfrenta. A segunda, que trata do percurso de alucinação em que ela se coloca. A terceira, sobre o confronto final, explicando como EU acredito que chegou àquele ponto.
E quero deixar muito claro aqui: eu não olhei nada que ninguém falou antes de escrever isso, porque não quero contaminar minha opinião e minhas teorias a respeito do filme com opiniões alheias. Não que eu seja crítica de cinema nem nada, mas quero fazer algo que venha de mim e do que eu acredito que esse filme representa.
A quebra de vínculo de Mima com o seu sonho
Em conversas com sua mãe ao telefone, bem no início do filme, fica bem claro: Mima não queria ser atriz. A garota queria, realmente, continuar cantando. Apesar de tudo, ela acreditava que mudar e passar a ser atriz seria melhor para a sua vida financeira, provavelmente. É uma garota que dá duro para sobreviver.
E, no meio disso, percebemos que algumas coisas estranhas acontecem. A direção faz questão de focar em um de seus fãs, o Me-Mania, que é propositadamente desenhado de maneira desfigurada e agressiva, apresentando-o como um stalker, ou seja, um perseguidor.
Logo depois de umas cenas que focam no rosto dele, Mima recebe um fax em casa, com o seguinte recado: “Traidora”. Provavelmente, (é o que o espectador pensa) a mensagem fora mandada por ele. Traidora, por quê? Bem, por que mais? Ela largou tudo o que dedicou mais de dois anos de sua vida: a carreira de idol. Ele poderia estar se sentindo traído, correto? Bem, pode ser por aí.
A partir daí, os cortes de cena e a trilha sonora se intensificam, e geram um sentimento incessável de ansiedade. A cada corte eu me sentia extremamente ansiosa. O pior de todos foi gerado quando Rumi falou para Mima que havia um site dedicado a ela. Mima, muito animada, entra no site. Contudo, ela vê toda a sua vida escrita ali: as coisas que compra no supermercado, a hora que sai dos lugares, com que pé entra no trem… tudo leve, assim, básico.
A tensão é evidente, ainda que nada aconteça, e todo o mérito pode ser dado a Satoshi Kon. A maior pergunta dessa primeira parte (e que você deve ter em mente) é: “quem é você?”, que dá início à segunda parte desse filme.
A alucinação em Perfect Blue
Eu não sei nada de psicologia. Psicóloga só a Amanda, que está escrevendo ótimos textos aqui no site (inclusive, depois que terminar esse aqui, leia o de Violet Evergarden, que tá lindo!). Mas, fora de meus devaneios, não acho que seja difícil de diagnosticar a situação mental caótica de Perfect Blue.
Mima passa por algo desesperador, que nós, espectadores, também passamos com ela: a encenação de um estupro. A cena é tão desconfortável, mas tão desconfortável, que eu tive que me forçar a manter os olhos na tela. Eu queria, a todo custo, desviar o olhar, mas se eu o fizesse, estaria desprezando o impacto da cena. É nojento, perturbador e assustador, e é quando Satoshi Kon mostra as garras.
Para mim, é assim que deveria ser apresentado. Estupro não é bonito e nem é um ato que deva ser romantizado, como muitos animes fazem por aí. O meu ponto é de que este momento foi a “virada de chave” na cabeça de Mima, em que, provavelmente, ela tenha se sentido sem rumo.
Seus olhos se tornam vazios e ela sai do set de filmagem como se tivesse sido abatida por um caminhão. Ela foi tocada em lugares que não deveria ter sido, fazendo uma cena que não deveria ter feito, com várias pessoas observando. Mima internaliza as situações que está vivenciando, as de ameaça de fãs e as de trabalhos abusivos e exploratórios, e simplesmente surta.
Vale também falar que ela faz um ensaio fotográfico completamente nua, que também não queria fazer. Isso é importante porque o filme completa seu trabalho em dizer quão podre é a indústria que rodeia as artes em geral. O assédio, não só físico como também mental, é dolorosamente explorado, fazendo-nos perceber que a mente é o primeiro lugar aprisionado quando há abuso.
Este surto começa a se tornar em algo maior…
É completamente compreensível quando Mima não consegue mais associar o que é fantasia ou o que é real. Pessoas que tinham ligação com seu trabalho de atriz começam a ser assassinadas, e ela se imagina assassinando-as. E nós, espectadores, vemos essas cenas ocorrendo. Vemos cortes de cenas de assassinato, depois a vemos deitada na cama. Olhamos pela perspectiva da Mima, e, por isso, também não conseguimos perfeitamente dizer se o que está ocorrendo é real – ou não.
Ela começa a ver versões diferentes de si; vê uma idol exatamente como ela, apontando e questionando sobre a sua escolha de ser atriz. Fala (a idol, que parece ser alucinação) diversas vezes sobre o seu erro de escolha. Ela se culpa, se sente suja, se sente presa e confunde sua atuação com a realidade.
Dorme, acorda, atua. Atua, dorme, acorda. Vive, atua, dorme, acorda. Vive. Atua. Viver acaba sendo atuar? Ou atuar é viver? É como paramos. Já não sabemos se o que ela está fazendo em cena é atuação ou se faz parte, de fato, da vida real. Nesse momento, o inimigo já não é mais o perseguidor: é sua própria mente.
Por isso, a pergunta feita na primeira parte começa a tomar sentido. Mima já não sabe mais quem ela é; se é a idol, se é a atriz ou se é ela mesma, distinta de seus dois papéis. No set, posteriormente, repete a pergunta: “Quem é você?”
O que aconteceu ao final de Perfect Blue?
Foi também a pergunta que eu me fiz. Pareceu extremamente repentina a mudança de ares e a aparição da Rumi, amiga da Mima, vestida de idol, como se estivesse “roubando” o papel da amiga. E aqui vai o que eu acredito que seja:
Rumi estava por trás de tudo o tempo todo. Como vemos as coisas sempre dos olhos de Mima, nunca a vimos (Rumi) como potencial assassina ou como alguém a almejar a fama de Mima. No entanto, eu acredito que todos esses entraves, inclusive o website carinhosamente apelidado de “Quarto da Mima” foi invenção da Rumi.
Afinal, apesar do perseguidor estar em todos os locais que a Mima estava, a Rumi também estava. Depois de algum tempo, as postagens estavam sendo distintas daquilo que Mima fazia, como se houvesse outra parte dela em algum lugar, a parte “idol”. E de fato havia, mas ela não conseguia enxergar (e nem nós), porque sempre havia visto Rumi como amiga.
Então, enquanto Mima acredita estar vendo ilusões de si mesma, Rumi arquiteta todos os planos por trás para matar todos aqueles que estão sujando a imagem imaculada e perfeita da idol Mima. E, como a “traidora” havia largado essa imagem, nada mais justo do que matá-la. Mima não era uma pessoa; era, na verdade, um personagem.
O ponto todo dessa história é, de fato, a despersonalização de artistas, cantores e cantoras, mais especificamente idols. Rumi, ao tomar o lugar de Mima, parece assumir um transtorno de personalidade, que vai se agravando, e, enquanto ela perde sua personalidade de produtora, vai colocando mais lenha para manter a “Mima” acesa.
Então, grande parte do que eu vi era ilusão?
Dez bilhões por cento de certeza, como diria o Senku, de Dr. Stone. Só que aqui é o Instituto Datafolha Helena de pesquisas. Penso que várias das vezes em que Mima alucinava com a sua versão idol conversando com ela, era na verdade a Rumi. Isso fica bem claro no final, quando os cortes se alternam, mostrando a face da “Mima” e da Rumi, alternadamente.
Então, quem a gente achava que era o vilão da história, que era o perseguidor, não era o vilão da história e estava mais para pau-mandado. No meio, quase acreditamos que a protagonista tinha matado todo mundo – e também não. E só no final é que vamos descobrir sobre o transtorno de Rumi.
Só que uma pergunta enigmática é deixada nos últimos segundos, quando a Mima faz a afirmação: “Não, eu sou a verdadeira!”. Seu olhar é malicioso e divertido, como se quisesse brincar com o espectador: o que vimos era verdade ou não? Essa é de fato a Mima? Ainda que seja, o que eu acho que faz mais sentido, não era essa a mensagem.
Perfect Blue arranja, desta forma, um jeito desagradável e contrastante de expor cruelmente o processo midiático para se tornar uma estrela. Afinal, ao final do filme, todos ficam em polvorosa por ver a “grande estrela” Mima. Poderia, sim, ser uma grande estrela. Mas quanto isso lhe custou? Fica a pergunta no ar.
Finalizando a crítica de Perfect Blue
Apesar do nome ser Perfect Blue, não tem nada de perfeito (porque é só tristeza) e nada de azul (porque tem muito sangue). Que venham os cults e me expliquem o significado! Bem, talvez seja exatamente com o sentido de ser irônico, para demonstrar que a indústria de idols é exatamente o contrário do que se pretende.
Perfect Blue não é para se divertir. É desagradável, mas é exatamente por isso que é uma obra de arte. Todos os cenários bem construídos, somados à animação de ponta e uma direção que carrega o filme nas costas são a fórmula perfeita para o sucesso. E, claro, a narrativa também.
Eu sugiro a você que respeite a classificação indicativa, se você não viu e está lendo essa crítica para ganhar spoilers de graça (não julgo, também faço isso de vez em quando). Tem cenas fortes e sangue para todos os lados da metade para o fim.
E, finalizando, quero dizer que realmente me surpreendi. Eu fui sem saber nada, sem ver nada de ninguém, só por recomendação do meu irmão (obrigada!). E foi uma grata surpresa. Bem, depois dessa, só me resta assistir um Yuru Camp para desestressar. Vou nessa!
E se você também gostou tanto de Perfect Blue como eu, fala aqui nos comentários! Se não gostou, fala também, afinal, todo mundo tem o direito de estar errado, não é?